Rota dos Engenhos de Rapadura: conheça o processo de produção da tradicional iguaria brasileira no Ceará
Pessoas lúcidas e que fazem o bom uso da razão costumam ir ao Ceará para ver praia. O estado reúne alguns dos destinos mais fuzilantes do Brasil. Jericoacoara, Canoa Quebrada, Morro Branco, Flexeiras, Taíba e Mundaú são apenas alguns exemplos do éden na terra.
Já seres dementes e obsessivos (chamou?) viajam para o estado em busca da… rapadura perfeita. Não consigo me lembrar quando e onde ouvi falar pela primeira vez dos Engenhos que se aglomeram na rodovia, a 35 quilômetros de Fortaleza. Eles não têm site, são poucas ocorrências no Google e os poucos telefones que encontrei não atendiam. Ninguém sabe, ninguém viu.
Mas num pequeno trecho de estrada — saindo da capital em direção ao Litoral Leste, na altura do km 37 da CE 040 — eles começam a aparecer. Tímidos, rústicos, simplórios. A produção é artesanal, passada de geração em geração. No Ceará, grande parte da safra de cana é destinada à fabricação de rapadura, considerada a mais brasileira das iguarias (embora sua origem seja disputada entre Açores e Canárias).
Ao contrário do que eu imaginava os trabalhadores dos engenhos já estão acostumados com os curiosos. Muita gente que vai em direção a Aquiraz (onde fica o Beach Park), Águas Belas, Morro Branco ou Canoa Quebrada acaba parando por aqui. O passeio é contemplativo. Observar a produção de rapadura em engenhos centenários coloca você como testemunha contemporânea do que restou deste Brasil Colonial.
Moendas e fornalhas pouco se modernizaram. Como a rapadura nunca chegou a ser uma mercadoria competitiva como o açúcar, o doce acabou se adaptando à produção regional. Embora os engenhos já não sejam mais movidos à tração animal o processo ainda é rudimentar.
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Primeiro a cana é moída e depois levada ao fogo. Os tachos borbulham por horas. O caldo dourado é remexido sem parar por Seo Luiz, há 30 anos no ofício. Ao atingir o ponto ideal o “mel” é transferido para outro panelão, onde cozinha mais um pouco até começar a se soltar do caldeirão.
A finalização tem que ser rápida para que a “massa” não endureça. Formas de madeira recebem o doce que, em pouco mais de 15 minutos, está pronto para o consumo. No livro Sociologia da Rapadura, o historiador Câmara Cascudo comenta que a rapadura era o doce das crianças pobres, presente para escravos e que até hoje nunca falta na casa de um sertanejo. Serve, entre outras coisas, para adoçar o leite, o café ou o mugunzá.
O Engenho São Luiz (CE 040 KM 35) é o mais preparado para receber turistas. O local é organizado, tem um café e lojinhas para você encher a mala de rapadura. Já o Engenho Três Irmãos — quase em frente ao São Luiz, só que do outro lado da rodovia — foi um dos primeiros a “temperar” o doce. São mais de 30 tipos de rapadura como ervas, gengibre, castanhas, amêndoas, goiaba, coco, café, entre outros.
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Um pouco mais adiante, no KM 39 está o Engenho Cana Dá, considerado o primeiro engenho da região e conhecido por tentar criar um Museu da Rapadura, que nunca saiu do papel. Mas quando chegamos não havia ninguém para atender. Uma senhorinha apareceu, mas não sabia dar informações precisas de nada. Apenas confirmou que o tal museu não existe mesmo.
Para conhecer a maior rapadura do mundo vá até o Engenho Tradição, no município de Pindoretama (CE 040 KM 48, voltando em direção a Fortaleza). Depois de quase perder a marca “rapadura” para uma empresa alemã (sim, uma empresa ALEMÃ sem qualquer tradição no negócio registrou a marca “rapadura”), os donos deste engenho resolveram produzir uma rapadura gigante para chamar a atenção sobre o caso.
O salceiro envolveu até o Ministério das Relações Exteriores que depois de uma longa briga fez a tal empresa alemã desistir da exclusividade sobre o nome comercial da rapadura. A rapadurona está no Guiness e pesa quase quatro toneladas. Ela fica exposta durante um ano e depois vira ração animal. O Engenho Tradição também tem lojinha, banheiros para os visitantes e uma tapiocaria ao lado.
A menos de um quilômetro de distância do Engenho Tradição está o Engenho Doce Sabor. Aqui, conheci o jovem Cleiton Costa, dono do engenho que pertence à família há mais de 150 anos.
Nós chegamos tímidos, meio sem jeito para fotografar (a ideia é nunca ser invasivo), mas o Cleiton — uma simpatia só — já foi mostrando todo o local, inclusive o engenho antigo e desativado que fica nos fundos da empresa. Contou histórias, explicou sobre o processo e disse que está modernizando o local para receber turistas interessados como nós.
Importante destacar que os engenhos funcionam das 7h às 17h. As primeiras fornadas costumam sair às 9h. Mas nem todos produzem a rapadura todos os dias. Sem contar que nunca se sabe se na hora em que você chegar vai ter tacho borbulhando ou rapadura sendo montada.
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Reforço que o passeio é mais antropológico do que turístico. A rota é humilde, sem estrutura e todos os esforços para melhorar o acesso do turista estão sendo feitos pelos próprios donos dos engenhos. Se você acha que a Rota dos Engenhos de Rapadura merece um lugar na sua viagem, vá com fé. Foi uma das minhas melhores experiências no Ceará. Mas lembre-se, eu posso servir de lição, não exatamente como exemplo! 🙂
SERVIÇO
Como chegar: nós alugamos um carro e passamos uma manhã percorrendo os engenhos. Não há ônibus de linha que pare na porta dos engenhos.
Onde estão: na CE 040, a partir do KM 35.
Funcionamento: todos os dias, 7h às 17h. Mas alguns podem não abrir no domingo e nem todos tem produção todos os dias. Tente se informar antes de ir.
Engenho São Luiz | Tel.: (085) 9948-9543 | CE 040 – KM 35 (na pista em direção ao Litoral Leste)
Engenho Três Irmãos | Tel. (085) 8799-2299 | CE 040 – KM 36 (na pista em direção a Fortaleza)
Engenho Cana Dá | Tel.: não descobri | CE 040 – KM 39 (na pista em direção ao Litoral Leste)
Engenho Tradição | Tel. (085) 9602-0048 | CE 040 – KM 48 (na pista em direção a Fortaleza, há um retorno quase em frente ao engenho)
Engenho Doce Sabor | Tel. (085) 9657-0855 e (085) 8537-6780 |CE 040 – KM 48 (na pista em direção a Fortaleza)
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Fotos: Sílvia Oliveria e Raul Mattar (3ª, 5ª e 16ª imagem)
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Olá, parabéns. Muito bom seu texto sobre a rapadura feita no Ceará. Eu, mesmo cearense, aprendi bastante. Esta área tem todo potencial para ser um ponto turístico. Poderia ter um “Visitor Center” onde pudesse ter um museu, um auditório com um vídeo legal sobre o assunto, lojinha, souvenirs… Coisa que é fácil encontrar em outros países.
Concordo, com mais estrutura e divulgação a rota seria um estouro! Abs!
Amei! Vou passar as férias em outubro lá e nunca tinha ouvido falar nesta rota. Eu gosto de praia, mas também gosto de história. Acho que a viagem fica redonda se a gente conseguir equilibrar as duas coisas. Muito obrigada pela dica, valeu! Adoro o site! Beiju!
Já que gosta de História, aproveite e vá conhecer o café Patriota, na rua Santos Dumont 1453. Vais amar!!!
Obrigada pela dica! 🙂
Silvia, sou fã do matraqueando e sempre estou lendo tudo que vc publica,já aproveitei muitas dicas suas em Buenos Aires e em Santiago. Agora fiquei feliz com a sua matéria sobre minha terrinha, amei sua pesquisa, pois na verdade esta Rota da Rapadura fica restrita a passagem para praias e o turismo local. Aquele povo trabalha artesanalmente e merecem muito esta divulgação. Fiz um trabalho fotográfico em alguns engenhos, apenas porque amo fotografia, se vc quiser posso te enviar com a autorização para uso. Mais uma vez parabéns pelo Matraqueando.
Valeu, Maria Ione! Muito obrigada! Volte sempre! 🙂
Olá!
Adoro o Matraqueando, e acho incrível como você consegue descobrir lugares legais, mas não tão conhecidos…
Abraço!
Juliana
Obrigada, Juliana! 😉
Pois é Silvia, infelizmente a rota é meio que esquecida tanto pelo turisat como pelo estado, o que vemos na estrada da rota e em muitas outras pelo nosso nordeste é o descaso com o nosso setanejo. AMOOOO rapadura, sempre foi minha sobremesa após o almoço, adoro mesmo é a tipo batida (mais molinha, uma delícia), quando você falou que é muito usada para adoçar pratos, me lembrei logo da minha infância (algo que realmente estava esquecido, e que você me fez lembrar! Que lembrança linda, obrigado!), minha mâe sempre “ralava” com a faca a rapadura e colocava no cuscuz, minha gente é muitooooo bom!!!! Parabéns Silvia, mais um belo texto!
Valeu, Paulo! 😀
Muito bom o texto e certamente iremos fazer esse roteiro (infelizmente tão pouco explorado) nas nossas próximas viagens. Post inspirador!!!
Já fui em um engenho de rapadura no Ceará, em uma cidade próxima de fortaleza. Foi uma aventura incrível e conheci muito sobre o Brasil nesta viagem. Também pude conhecer uma fábrica de cachaça e me diverti muito no Ceará. É um Estado lindo e com pessoas muito agradáveis. Quando você tiver um tempinho, conheça meu site também: http://elaele.com.br
Até mais.
Ótimo material!!!
Vai a dica de outro local pra visitar no Ceará: http://www.ipark.tur.br/museu
Bem próximo a Fortaleza. Outro lugar muito interessante e pouco conhecido é o Parque Nacional de Ubajara.
Obrigada pela dica! 😉
Oi, Silvia. Tudo bem? 🙂
Seu post foi selecionado para o #linkódromo, do Viaje na Viagem.
Dá uma olhada em http://www.viajenaviagem.com
Até mais,
Boia – Natalie
Uêba, valeu! 😉
Pindoretama, minha terra. Na minha época de engenho o papai preparava o mel após o ponto da rapadura para a batida. No mel grosso e bem mais claro, ainda no tacho, quente, era mergulhada uma lina com castanhas enfiadas. Trabalho feito pelas mulheres e crianças. Depois do mergulho suspendia-se e rapidamente esfriava. Era uma ansiedade só para comer aquela delicia macia e crocante. Estou com água na boca.
Mel de cana (aqui no sudeste e no sul chamado de melado) faz parte do meu cardápio. O mel que encontro no mercado vem de Antonio da Patrulha no Rio Grande do Sul.
Silva, voce estava entre Pindoretama e Cascavel. Chegou a ir até Cascavel?
Não cheguei ir até Cascavel! 😉
como e nome do tio eu preciso trabalho
Qüero conhecer este lugar .
Oi, boa tarde. Sou estudante de Turismo, li o seu artigo e ele me ajudou a decidir sobre o que falar no meu TCC: Rota dos Engenhos de Rapadura como atrativo turístico. Porém, estou encontrando muita dificuldade para encontrar bibliografia. Será que você tem alguma indicação de livros ou material para me indicar? Desde já, muitíssimo obrigada.
Olá, Veruska! Posso te dizer sem nenhum modéstia que eu praticamente montei essa “Rota dos Engenhos de Rapadura”. Antes d’eu ir não havia nada na internet a respeito e o contato com os engenhos era (e é ainda muito difícil). O que eu coloquei aqui descobri in loco. Sugiro que você faça a rota (há outros engenhos na região que não visitei) e você mesma levante o roteiro detalhadamente. Lá eles podem te ajudar! 😉
Gostaria de saber se tem algum engenho próximo a Flecheiras?
Gostaria de saber se existe algum engenho perto de flexeiras?
Vim apenas agradecer pelo texto tão carinhoso com o estado do Ceará! A rapadura é, realmente, um produto que merece ser valorizado por todo sabor, potencial e pela cultura que carrega. Sua ideia da rota é ótima, assim como as opiniões dadas no comentários! Que o Estado e suas parcerias possam aplicar!
Obrigada pela visita, Kamila!
Excelente informação. Parabéns!!!
Muito grato por tudo que li aqui.
Obrigada pela visita, Felipe!
rapadurinha no café especial é uma delícia! Quando passar por Fortaleza de novo, vou dar uma olhada nessa rota doce… ahahahahahaha